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Álcool combustível "vira cachaça" de dependentes

Especialista alerta para risco de morte ao consumir o combustível

Fonte: Jacqueline Lopes/Midiamax em 28 de Setembro de 2009

Alessandra Carvalho/Midiamax

O etanol presente em combustíveis pode ser fatal quando ingerido

Em meio ao movimento de veículos que entram e saem do posto de combustível, chega o ciclista no fim da tarde. Trabalhador da construção civil, aparência de meia idade, ele para a bicicleta perto da bomba de álcool, tira uma garrafinha de água da sacola presa ao banquinho da "magrela" e pede para o frentista enchê-la. Rapidamente, pega o "combustível", entrega moedas ao frentista e segue seu rumo. “Ele vem sempre aqui. Compra para beber”, diz o funcionário de um posto de gasolina do Bairro Tiradentes, em Campo Grande. O colega acrescenta: "são muitos que bebem". 

O consumo do álcool combustível como se fosse bebida revela o problema do alcoolismo na Capital e a prática é tida como um suicídio. O alerta é da farmacêutica do Civitox-MS (Centro Integrado de Vigilância Toxicológica), do Hospital Regional, Flávia Luiza de Almeida Lopes. Enquanto o volume de etanol permitido na cerveja varia de 4% a 6%, a concentração de etanol combustível é de 100% com o acréscimo de 4% de água. Entre os destilados, como a pinga e o uísque, o volume de álcool é de 50%, ou seja, um litro de cachaça tem metade de etanol. 

“O etanol presente em combustíveis, cosméticos, antissépticos não é alimento nem bebida, não possui boas normas de fabricação para ingestão humana. Ele não deve ser utilizado de forma inadequada. A concentração do etanol no sangue pode ser fatal”, alerta Flávia Lopes. Em casos de intoxicação pode levar ao coma profundo. Em 2008, Mato Grosso do Sul registrou 105 casos de "envenenamento" por abuso de drogas, mas não há dados compilados sobre etanol, segundo o Ministério da Saúde. 

“Porre violento” 

E.N., 61, alimentou a dependência química em bares, farmácias, postos de combustíveis. Ele conta que ingeriu todo tipo de bebida alcoólica, etanol usado para limpeza, perfume, desodorante e até combustível de avião e veículo. Sobre a sensação de ingerir o etanol que move os veículos, E.N. frisa: “é um porre violento". 

Militar da reserva, relata que perdeu família, dinheiro, amigos. “A decadência financeira é que leva o alcoólatra a tudo isso. Quem deve não tem nada. Eu não tinha condições de ir nos bares porque estava endividado. Aí surgiu a ideia de beber o álcool diluído com água”. E.N. conheceu a bebida alcoólica aos 8 anos com colegas na escola e nas ruas de Corumbá, cidade a 400 quilômetros da capital sul-mato-grossense. Ingressou na Marinha e aos 16 anos foi para o Rio de Janeiro. Na "Cidade Maravilhosa" trabalhou 30 anos e lá conheceu outros tipos de drogas. Ele voltou à cidade natal e por mais onze anos como militar se rendeu à dependência da cocaína. 

No fundo do poço, ele sentia dores terríveis. O fígado estava quase destruído. Vômitos mostravam a reação de um organismo que sinalizava para que parasse antes que fosse tarde demais. Flávia Lopes explica o horror pelo qual vivencia o alcoólatra. “O etanol é um depressor do sistema nervoso central. Ele causa alterações comportamentais, como agressividade, sentimento de culpa, psicose, depressão, etc. As alterações ocorrem em vários órgãos e sistemas e podem causar danos hormonais, nutricionais, cardiovasculares e os problemas atingirem ainda o fígado, pâncreas, e estômago.” 

No homem, o etanol causa impotência sexual, atrofia testicular, diminuição da produção de espermatozóides. Além de prejudicar a fala e causar deterioração mental crônica. Em gestantes, a destruição atinge diretamente o feto. Ela atravessa a barreira placentária e provoca síndrome alcoólica fetal, anomalias faciais e retardo mental no bebê. 

Recuperação 

No caso de E.N. foram 36 anos de bebidas e drogas como cocaína e pasta base. Hoje, ele trabalha na Associação dos Alcoólicos Anônimos (AA). “Tenho 14 anos de sobriedade. Na sexta-feira, eu vou me casar. Já estou no quarto casamento. Aqui no AA temos a liberdade, dependemos de um Deus que é superior a nós mesmos.” 

Fundo do poço 

Em uma das praças da Capital a reportagem encontrou Nelson, 42, Gabriel, 38, e Hilda, 48. Unidos pela amizade que nasce quando o vínculo familiar perde-se, e a rua é a moradia, os três são alcoólatras. Nos rostos, as marcas. Rugas, falta da dentição, olhos amarelados, tristeza. As falas são embaralhadas. Eles dizem que compram pinga, mas conhecem pessoas que buscam combustível por ser três vezes mais barato que o "corotinho". 

Em flashes de sobriedade, falam do tormento fomentado pelo álcool. “Eu bebo desde pequeno. Eu compro pinga. A pinga já está matando, imagina tomar da bomba do posto? É pura química, é pior porque aí estoura tudo. Por enquanto eu não bebo isso não”, frisa, Nelson Silva, que nasceu em São Paulo e veio para Mato Grosso do Sul para trabalhar em carvoarias. Há dez anos, está longe da família e vive nas ruas. “Trabalhei de tratorista, motorista, no corte da cana, e em carvoaria.” 

A história de Hilda é parecida, mas ela prefere não comentar "assunto de mulher" perto dos amigos. Já Gabriel Fernandes conta que na rua, o álcool é comprado no posto, mistura-se água e coloca-se açúcar. “Mas, não bebo isso. Pode cheirar aí a garrafa, que é água. Eu bebo é pinga”, diz o rapaz com rosto envelhecido. Os três querem seguir viagem para um dia reencontrar os familiares e deixar a bebida. Mas, o futuro é incerto e não há no sistema público de saúde iniciativas voltadas para os indigentes alcoólatras. 

O Ministério da Saúde tem por todo o País os Caps (Centros de Apoio Psicossocial), locais que dão apoio psicológico, mas para o alcoólatra receber atendimento é preciso frequentar o Caps e ter o mínimo de estrutura financeira para seguir o tratamento em casa.

"Droga lícita" 

O etanol presente em bebidas alcoólicas é uma droga de abuso lícita, permitida na legislação brasileira. É a droga mais utilizada no Brasil e isso pode ser exemplificado pelo volume publicitário que embala milhões no País. Em combustíveis: no Brasil a gasolina pode ser misturada de 20% a 25% de etanol anidro, com menos de 1% de água. Já o álcool combustível tem 100% de etanol puro, com até 4,95% de água. 

Em bebidas alcoólicas a porcentagem de etanol tem as seguintes variações: 

Cerveja: 4-6% 

Vinho: 10 - 20% 

Tequila: 40 a 47 % 

Vodka: 40 - 50% 

Cachaça e uísque: 40-50%